quinta-feira, 29 de maio de 2014

QUAL É O PROBLEMA COM A ZONA DE CONFORTO?


Pelo tempo que trabalho com T&D, cansei de ouvir a expressão “sair da zona de conforto”. Já ouvimos várias vezes a mesma expressão, mas ouvi-la ad nauseum como hoje em dia, em que congressistas, palestrantes, gurus motivacionais e donas de casa repetem-na como um mantra para ter uma vida melhor, é exagero.

Pesquisas sobre o assunto nos dizem que é fora da famigerada zona que surge a inovação, a criatividade, a paz no Oriente Médio e qualquer outra coisa que queira atribuir-se. Contudo, o ditado “o diabo não é tão feio quanto pintam” é aplicável aqui. Demoniza-se de tal forma essa zona de conforto que todos acabam querendo sair dela a todo custo, mesmo que isso custe seu bem-estar, ou seu... conforto. Uma rápida busca com as palavras “como obter conforto” no Google, gerou 12,4 milhões de resultados. Uma nova consulta sobre “como sair da zona de conforto” retorna 1,2 milhões de respostas. Uma em cada 10 pessoas tenta fugir do conforto que lutaram para conseguir.

Nunca tomei ciência de alguém que devolve um colchão na loja por ser confortável demais. Seria contraproducente ou, no mínimo, incoerente. Como a questão das “zonas” em T&D variam de autor para autor, resolvi eu mesmo dividi-las em três e defini-las, a saber: zona de conforto, zona de esforço e zona de melhoria.

A zona de conforto é aquela em que nos sentimos confortáveis, e não há mal em sentir-se confortável, já que é aquilo que buscamos para nós mesmos, durante toda a vida. É a área/período de tempo/estado de espírito em que estamos satisfeitos, acostumados, tranqüilos, aptos, bem treinados, competentes.

A zona de esforço é a zona em que inovamos e buscamos algo novo. É o estado de espírito em que nos encontramos quando nos matriculamos em um curso de extensão, estudamos outra área, tentamos conhecer novos assuntos, empreendemos e começamos novos negócios, sejam novas carreiras, sociedades ou nossa própria empresa.

A zona de melhoria é aquela em que consolidamos, damos acabamento e “polimos” aquilo que previamente conquistamos. É o período de tempo em que fazemos a “versão 1.1”, conversamos com outros fornecedores para conseguirmos melhores acordos, refinamos nossa logística e sistema de entregas ou aprimoramos nossos atendimentos on-line.

Depois de passar por essas três zonas, retornamos à primeira, a nossa zona de conforto, fazendo o ciclo de aceitação, inovação e consolidação. Ou nascer, crescer e morrer. Ou qualquer outro ciclo de três etapas. Então, qual é o grande problema da zona de conforto, já que temos que passar por ela? Seria como pular etapas, reclamar que alguém está envelhecendo, ou reclamar de ter de arrumar a cama para depois bagunçá-la. O problema maior aí, e que poucas pessoas dão-se ao luxo de refletir sobre, é deter-se em uma única área/período de tempo/estado de espírito por um tempo demasiado longo, e não o tal conforto. O problema é confundir zona de conforto com zona de conformismo.

Parar na zona de conforto nos leva ao comodismo, à fobia de mudanças, negarmos toda e qualquer oportunidade de aprendizado e melhoria, e citando a banda Deadfish em sua música “Bem Vindo ao Clube”; nos tornarmos estáveis sem estarmos bem, pensar apenas em engordar e envelhecer.

Até mesmo a zona de esforço pode ser perniciosa se nos detivermos apenas nela. Sofreremos do “Mal da Nunca Finalização”, também conhecido como “Síndrome do Empreendedorismo Infinito”, em que o portador inicia diversos trabalhos em rápida sequência e sucessão, sem ser capaz de levar a cabo qualquer desses projetos. Além disso, eles vivem tanto em idéias arrojadas que não são capazes de implantá-las e se o fazem, não a melhoram, deixando-a rapidamente de lado para começar outro projeto igualmente arrojado. Como uma criança que deixa de lado um brinquedo velho por um novo, ou alguém que nunca dá uma segunda demão de tinta.

Por fim, puxar o freio de mão na zona de melhoria não deixa de ser tão prejudicial como qualquer dos parágrafos anteriores: é onde nos focamos apenas em tornar uma idéia maravilhosa, e deixamos de lado todas as outras. É onde restringimos nossa visão em apenas um produto, um público, uma medida, e esquecemos de todo o resto. É como fazer supino com um braço só, e deixar o outro fino e ressequido. Não que não devamos ter foco em um produto ou serviço, mas focar-se tão somente nisso... bem, todos vimos onde as máquinas de escrever, aparelhos de videocassete e os disquetes mais avançados da época foram parar!

Enfim, não importa qual seja sua ou a minha religião: os ensinamentos de Buda ou quaisquer outros gurus sobre autocontrole, temperança e o chamado “caminho do meio” não deixam de ser verdadeiros. Focar-se demais em inovar, em melhorar, ou deixar como está, pode ser uma armadilha que nós colocamos no nosso próprio caminho.

Há campos que precisam de uma revisão de conceitos, injeção de fôlego, novas ideias e olhares, visto que a mesmice estagnou a visão dos especialistas. Há coisas na vida que precisamos melhorar, sem necessariamente reinventar a roda. Apesar de ser muito bonito o discurso de que precisamos inovar sempre, não temos que inovar o tempo todo, todo o tempo. E finalmente, há momentos em que devemos, de maneira comprometida, jogar os pés para o alto, o corpo para trás e curtirmos o ritmo da vida, desfrutarmos do conforto que tanto suamos, trabalhamos e lutamos para conquistar e merecer; pois quem não para de vez em quando para curtir a paisagem até chega ao destino, mas não se pode dizer que aproveitou a viagem.

Afinal, quem garante que algum dos “planos infalíveis” do Cebolinha não teria funcionado do jeitinho que ele esperava, se ele fizesse uma “versão 1.2”?